Há dois meses conheci uma menina muito especial que me pediu
que a ajudasse com algumas questões de estudo. No auge dos seus dezenove anos,
a moça de sorriso largo e excelente humor apresentou-se a mim explicando
exatamente o que desejava: estava se preparando para o ENEM e ouviu de uma
amiga em comum, que eu poderia ser útil.
Em nosso primeiro encontro, mal começamos a falar de
vestibular e eu esqueci completamente do motivo da conversa, mergulhando em
lembranças do meu próprio tempo de faculdade. Todo um passado que já havia
sumido da minha mente, de repente voltou à tona com muita força, e explodiu na
minha cabeça enquanto a menina falava sobre questões de múltipla escolha e sobre
a fórmula estranha de correção da prova.
Naquela hora a minha mente desligou. Apagou! Eu me lembrei -
lembrei não! - eu voltei no tempo e me vi caminhando pro meu vestibular naquele
campus enorme da Federal de 30 anos atrás, num misto de medo e ansiedade que
quase me faziam vomitar. A obrigação de passar em escola pública, a incerteza
sobre o futuro, o pânico corroendo meu estômago...
Um instante depois e eu já estava de volta à conversa! Acho
que ela nem percebeu que eu 'viajei' pra longe enquanto tentava (ou não
tentava, não sei mais) ouvi-la falar do motivo dela estar ali. Tentei me
concentrar no que ela dizia. Usei a técnica de olhar direto no olho (técnica
meio intimidadora às vezes, admito), e foi quando vi outra pessoa falando!
Não era uma menina risonha, de bem com a vida, segura de si
e preocupada só com a prova de matemática (sim, sou ÓTIMO em matemática! E não,
não tenho mais vagas para aula particular!). O movimento dos olhos e a
expressão no rosto dela mostravam que havia mais coisa lá dentro. Não era medo
de prova nenhuma (ao menos assim não me pareceu). Ela falava do friozinho na
barriga na hora do tal ENEM (que vestibular moderno, o de hoje!), mas seus
olhos não expressavam temor algum. Pelo contrário, ela falava com as expressões
de um animal do mato quando se prepara pra ir caçar.
Era uma certa ansiedade, talvez até uma raiva... sei lá.
Não, era outra coisa... Uma incompreensão, como se ela não se conformasse com
alguma coisa que - pra ela - não estava certa. Algo que não se ajustava
direito, que não se encaixava.
Mas como eu não estava ali pra ser analista de ninguém (ela
havia deixado claro que queria ajuda pra passar na tal prova - e só), guardei
aquilo pra mim e fui lá fazer meu trabalho.
Tivemos outras aulas particulares. No início de todas elas,
nós conversávamos um pouco. Primeiramente sobre amenidades, depois passávamos
para questões mais sérias - ela sempre com o mesmo sorriso fácil e o mesmo
olhar sem medo. Depois vinham as explicações e os exercícios.
As aulas acabaram. A menina aprendeu a matéria e sei que
está preparada para passar no exame e mudar o curso da sua própria história.
Para o último encontro que teríamos, decidi fazer-lhe uma
surpresa. Resolvi usar os poderes mágicos que aprendi nos livros do Paulo
Coelho (tá bem, tô exagerando, né?!!!) e provocar uma introspecção, fazer com
que ela viajasse pra dentro de si mesma - e achasse lá dentro o recurso que ela
não via de fora, mas que eu sabia que havia nela: essa coisa, essa alma de
bicho predador, de caçador...
Preparei um sutil discurso hipnótico perfeito! Falei muito,
misturando na fala um montão de números, de frases, de sentimentos... Ora eu
falava rápido, ora devagar. A moça acompanhava meu raciocínio e, sem saber que
estava sendo guiada, mergulhava pra dentro de sua própria alma. Funcionou
perfeitamente! No final daquela última aula, graças a Deus, a moça acertou - de
forma quase inconsciente - tudo quanto era exercício, saindo de lá com a
postura de um soldado que finalmente veste o uniforme e se sente pronto pra
combater o bom combate, pra lutar pelos seus próprios sonhos e ideais.
Eu terminei o trabalho com aquela sensação boa de ter feito
o serviço bem feito, de ter sido útil, de ter ajudado alguém.
Era o fim de mais uma corrida minha. Havia sido uma corrida
rápida, só uns 5km. Mas, como no final de toda corrida, eu me sentia muito bem.
Provavelmente eu e aquela jovem corredora nunca mais nos
encontraremos. O vestibular logo virá (se você chegar a ler isso, boa sorte -
menina! Estou torcendo e rezando daqui. SEI que vai dar tudo certo!), depois a
faculdade, a carreira. Eu pude ser útil! Ajudei a moça a correr uma corrida
importante pra ela. Isto mais que pagou as minhas aulas.
Na hora de nos despedirmos, entretanto, a menina pede que eu
espere um pouco (outro aluno já aguardava sua hora) e vai até o carro, me
deixando a conversar com sua mãe.
Instantes depois ela volta. E aí ela deu o troco: olhou lá
dentro do meu olho, exatamente como eu tinha feito com ela no primeiro dia, e deu
um sorriso tão afetuoso e tão sincero que me deixou sem ação. Afinal, qual
menina pós-adolescente às vésperas do tal ENEM iria se importar com um
professor particular de matemática nas horas vagas?
Aquele sorriso dela durou um segundo que demorou a vida
toda. Eu fiquei perplexo, não esperava aquela espontaneidade. Eu já tinha
recebido meu pagamento. Era pra ela ir embora com a mãe e pronto! Fim!
Por que voltar? Pra quê aquilo?
E aí veio o golpe final: a menina abriu a mão e me mostrou
um (um não, três!) origami. "Que ela mesma fez pra você", me disse a
mãe. "Ficou um tempão no quarto dela, dobrando e amarrando",
concluiu.
Olhei para a peça – a moça continuava sorrindo. Rapidamente passou
por minha cabeça o trabalho que ela deve ter tido pra fazer aquela peça. Uma
pós-adolescente que perde a noite de sexta preparando uma coisa pra me agradar,
por quê? Minutos antes, eu que havia
falado enfaticamente com ela exatamente sobre símbolos, sobre a importância
deles no nosso subconsciente, recebo nada menos que um precioso artefato –
feito pelas mãos da própria aluna.
Eu desabei. Do mesmo jeito que fiz no término dos 42Km do
Rio, eu - velho, carrancudo e rabugento - virei pro lado e chorei igual menino
pequeno. Foi um choro de emoção, de gratidão, de limpeza. E aquele foi um ótimo
dia pra mim.
A vida é engraçada mesmo! Depois de 19 anos fazendo errado,
eu finalmente começo a aprender como me aproximar da minha filha, que - não por
coincidência - tem exatamente a mesma idade dessa moça. E ao aprender a fazer
isso, recebo - sem merecer - a gratidão de outra menina, expressa de forma tão
espontânea quanto sincera.
Justo eu, que há algum tempo atrás jamais imaginaria chamar
de amiga alguém com idade e pensamentos tão diferentes dos meus, me vi
recebendo das mãos de uma jovem guerreira a medalha mais bonita de todas (incluindo
a da maratona do Rio).
Muito obrigado, moça! Seu presente ficará guardado pra sempre
numa parte muito especial do mural das minhas medalhas. Mas o significado dele
ficou gravado e guardado numa parte muito especial - do meu peito.
Após ler esse texto, se você for um visitante novo,
certamente deve estar se perguntando: “por que o cara escreveu isso num blog de
corrida?”. É que esse blog há muito tempo deixou de falar sobre corrida de rua
(acho até que ele nunca falou só disso!) e passou a ser uma espécie de diário
aberto, em que posso tornar públicos e, ao mesmo tempo, guardar pra sempre
(enquanto houver Internet) os melhores momentos da minha vida, as melhores
corridas. Escrevo aqui todas as coisas que me marcam e que são importantes pra
mim. Faço-o, caro leitor, para dividir estas experiências com você – mas faço-o,
principalmente, para que eu nunca me esqueça do caminho que me decidi a
percorrer.
E vamos treinar que domingo tem ENEM e longão!
Um comentário:
Também me emocionei com o presente da menina... PARABÉNS!! Você mereceu!! Não só esse, como muitos outros que virão!!!
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