quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Origami

Há dois meses conheci uma menina muito especial que me pediu que a ajudasse com algumas questões de estudo. No auge dos seus dezenove anos, a moça de sorriso largo e excelente humor apresentou-se a mim explicando exatamente o que desejava: estava se preparando para o ENEM e ouviu de uma amiga em comum, que eu poderia ser útil.


Em nosso primeiro encontro, mal começamos a falar de vestibular e eu esqueci completamente do motivo da conversa, mergulhando em lembranças do meu próprio tempo de faculdade. Todo um passado que já havia sumido da minha mente, de repente voltou à tona com muita força, e explodiu na minha cabeça enquanto a menina falava sobre questões de múltipla escolha e sobre a fórmula estranha de correção da prova.
Naquela hora a minha mente desligou. Apagou! Eu me lembrei - lembrei não! - eu voltei no tempo e me vi caminhando pro meu vestibular naquele campus enorme da Federal de 30 anos atrás, num misto de medo e ansiedade que quase me faziam vomitar. A obrigação de passar em escola pública, a incerteza sobre o futuro, o pânico corroendo meu estômago...
Um instante depois e eu já estava de volta à conversa! Acho que ela nem percebeu que eu 'viajei' pra longe enquanto tentava (ou não tentava, não sei mais) ouvi-la falar do motivo dela estar ali. Tentei me concentrar no que ela dizia. Usei a técnica de olhar direto no olho (técnica meio intimidadora às vezes, admito), e foi quando vi outra pessoa falando!
Não era uma menina risonha, de bem com a vida, segura de si e preocupada só com a prova de matemática (sim, sou ÓTIMO em matemática! E não, não tenho mais vagas para aula particular!). O movimento dos olhos e a expressão no rosto dela mostravam que havia mais coisa lá dentro. Não era medo de prova nenhuma (ao menos assim não me pareceu). Ela falava do friozinho na barriga na hora do tal ENEM (que vestibular moderno, o de hoje!), mas seus olhos não expressavam temor algum. Pelo contrário, ela falava com as expressões de um animal do mato quando se prepara pra ir caçar.
Era uma certa ansiedade, talvez até uma raiva... sei lá. Não, era outra coisa... Uma incompreensão, como se ela não se conformasse com alguma coisa que - pra ela - não estava certa. Algo que não se ajustava direito, que não se encaixava.
Mas como eu não estava ali pra ser analista de ninguém (ela havia deixado claro que queria ajuda pra passar na tal prova - e só), guardei aquilo pra mim e fui lá fazer meu trabalho.
Tivemos outras aulas particulares. No início de todas elas, nós conversávamos um pouco. Primeiramente sobre amenidades, depois passávamos para questões mais sérias - ela sempre com o mesmo sorriso fácil e o mesmo olhar sem medo. Depois vinham as explicações e os exercícios.
As aulas acabaram. A menina aprendeu a matéria e sei que está preparada para passar no exame e mudar o curso da sua própria história.
Para o último encontro que teríamos, decidi fazer-lhe uma surpresa. Resolvi usar os poderes mágicos que aprendi nos livros do Paulo Coelho (tá bem, tô exagerando, né?!!!) e provocar uma introspecção, fazer com que ela viajasse pra dentro de si mesma - e achasse lá dentro o recurso que ela não via de fora, mas que eu sabia que havia nela: essa coisa, essa alma de bicho predador, de caçador...
Preparei um sutil discurso hipnótico perfeito! Falei muito, misturando na fala um montão de números, de frases, de sentimentos... Ora eu falava rápido, ora devagar. A moça acompanhava meu raciocínio e, sem saber que estava sendo guiada, mergulhava pra dentro de sua própria alma. Funcionou perfeitamente! No final daquela última aula, graças a Deus, a moça acertou - de forma quase inconsciente - tudo quanto era exercício, saindo de lá com a postura de um soldado que finalmente veste o uniforme e se sente pronto pra combater o bom combate, pra lutar pelos seus próprios sonhos e ideais.
Eu terminei o trabalho com aquela sensação boa de ter feito o serviço bem feito, de ter sido útil, de ter ajudado alguém.
Era o fim de mais uma corrida minha. Havia sido uma corrida rápida, só uns 5km. Mas, como no final de toda corrida, eu me sentia muito bem.
Provavelmente eu e aquela jovem corredora nunca mais nos encontraremos. O vestibular logo virá (se você chegar a ler isso, boa sorte - menina! Estou torcendo e rezando daqui. SEI que vai dar tudo certo!), depois a faculdade, a carreira. Eu pude ser útil! Ajudei a moça a correr uma corrida importante pra ela. Isto mais que pagou as minhas aulas.
Na hora de nos despedirmos, entretanto, a menina pede que eu espere um pouco (outro aluno já aguardava sua hora) e vai até o carro, me deixando a conversar com sua mãe.
Instantes depois ela volta. E aí ela deu o troco: olhou lá dentro do meu olho, exatamente como eu tinha feito com ela no primeiro dia, e deu um sorriso tão afetuoso e tão sincero que me deixou sem ação. Afinal, qual menina pós-adolescente às vésperas do tal ENEM iria se importar com um professor particular de matemática nas horas vagas?
Aquele sorriso dela durou um segundo que demorou a vida toda. Eu fiquei perplexo, não esperava aquela espontaneidade. Eu já tinha recebido meu pagamento. Era pra ela ir embora com a mãe e pronto! Fim!
Por que voltar? Pra quê aquilo?
E aí veio o golpe final: a menina abriu a mão e me mostrou um (um não, três!) origami. "Que ela mesma fez pra você", me disse a mãe. "Ficou um tempão no quarto dela, dobrando e amarrando", concluiu.
 

Olhei para a peça – a moça continuava sorrindo. Rapidamente passou por minha cabeça o trabalho que ela deve ter tido pra fazer aquela peça. Uma pós-adolescente que perde a noite de sexta preparando uma coisa pra me agradar, por quê?  Minutos antes, eu que havia falado enfaticamente com ela exatamente sobre símbolos, sobre a importância deles no nosso subconsciente, recebo nada menos que um precioso artefato – feito pelas mãos da própria aluna.
Eu desabei. Do mesmo jeito que fiz no término dos 42Km do Rio, eu - velho, carrancudo e rabugento - virei pro lado e chorei igual menino pequeno. Foi um choro de emoção, de gratidão, de limpeza. E aquele foi um ótimo dia pra mim.
A vida é engraçada mesmo! Depois de 19 anos fazendo errado, eu finalmente começo a aprender como me aproximar da minha filha, que - não por coincidência - tem exatamente a mesma idade dessa moça. E ao aprender a fazer isso, recebo - sem merecer - a gratidão de outra menina, expressa de forma tão espontânea quanto sincera.
Justo eu, que há algum tempo atrás jamais imaginaria chamar de amiga alguém com idade e pensamentos tão diferentes dos meus, me vi recebendo das mãos de uma jovem guerreira a medalha mais bonita de todas (incluindo a da maratona do Rio).
Muito obrigado, moça! Seu presente ficará guardado pra sempre numa parte muito especial do mural das minhas medalhas. Mas o significado dele ficou gravado e guardado numa parte muito especial - do meu peito.

Após ler esse texto, se você for um visitante novo, certamente deve estar se perguntando: “por que o cara escreveu isso num blog de corrida?”. É que esse blog há muito tempo deixou de falar sobre corrida de rua (acho até que ele nunca falou só disso!) e passou a ser uma espécie de diário aberto, em que posso tornar públicos e, ao mesmo tempo, guardar pra sempre (enquanto houver Internet) os melhores momentos da minha vida, as melhores corridas. Escrevo aqui todas as coisas que me marcam e que são importantes pra mim. Faço-o, caro leitor, para dividir estas experiências com você – mas faço-o, principalmente, para que eu nunca me esqueça do caminho que me decidi a percorrer.

E vamos treinar que domingo tem ENEM e longão!