terça-feira, 14 de abril de 2015

Dia 1 - a Liberdade não é perfeita

Diário de bordo: data estelar 150413.1
Coincidências não existem. Não mesmo.

Acordei às 6h 15, tomei um longo banho e fui arrumar as coisas para partir. Liberdade passou a noite no quarto,  o que facilitou o trabalho de consertar o bagageiro que havia se soltado. O café na pousada do Desterro estava ótimo! Comi dois pães com margarina, tomei café com leite e suco de maracujá. Pedi para levar um pacotinho de torradas e uma maçã para comer no caminho. A senhora cujo nome esqueci carimbou minha credencial e voltei ao quarto para arrumar a mala. Tirei a Liberdade do quarto e fui lubrificar a corrente que havia ficado muito ressecada na travessia do riacho na serra do cipó. Às 8 e 15 eu finalmente deixei o Desterro. Só meia hora depois, quando já estava na saída da cidade é que percebi que havia me esquecido de encher a garrafinha de água (o nome científico é caramanhola). Haviam três senhoras conversando na porta de uma casa muito bonita, e eu perguntei se podia usar a torneira para repor a água. Mesmo com os meus protestos,  a dona da casa fez questão de buscar água filtrada fresca. Enquanto ela entrou na casa, peguei o iPhone e tirei umas fotos. Minutos depois, a senhora voltou com um jarro d'Água super gelada. Bebi um copo, enchi a caramanhola, agradeci às senhoras e parti. Dei uma só pedalada e vi o iPhone cair no meio do asfalto! Para minha surpresa, nenhum dano! Peguei o telefone e segui viagem debaixo de um sol forte e um vento suave.
Andei por um canavial e por uma plantação de café. Um avião agrícola sobrevoava a propriedade e voava tão baixo que acho que o piloto me viu. A vista era linda, e o caminho tranquilo. Passei pela cidadezinha de Itobi e parei no supermercado pra comprar água, suco e uma flanela branca pra limpar os óculos (eles ficam constantemente embaçados pelo suor). Vi uns biscoitos com o nome sugestivo de 'passatempo' e comprei. Levei também um sorvete e umas barrinhas de doce de banana (ótimo para evitar câimbras). Parei ao lado do coreto na praça pra descansar e tomar o sorvete. A vista da bela igreja e a tranquilidade do lugar me fizeram muito bem. Ao sair, percebi que havia sinal de celular e liguei pra Eneida. Conversamos um pouco e fui até o hotel para carimbar a credencial e seguir viagem.
Ao meio dia cheguei em Vargem Grande do Sul. Parei em uma padaria e almocei dois pães com presunto e queijo, com cerveja sem álcool pra acompanhar. Tudo delicioso!
Comprei uma caixinha de água de coco (horrível! Nunca mais compro isso!) e enchi a caramanhola. Liguei novamente pra Eneida e ai ela me salvou: "vê se bebe essa água logo e lava a garrafinha, senão vai azedar tudo!". O que seria de mim sem ela?...
Já na saída de Vargem Grande começou uma subida que duraria o resto do dia. Nunca peguei uma subida tão forte. Foram quatro horas só subindo. Na maioria do tempo eu tinha que empurrar e, algumas vezes, até empurrar a bike era difícil. Pra complicar, o câmbio da Liberdade deu defeito. A primeira marcha (a mais leve, justo a que eu mais usaria na subida) não entrava de jeito nenhum! Parei sob uma árvore, tirei as ferramentas e tentei regular o câmbio, mas não deu certo. Após mais de meia hora tentando fazer o reparo, desisti e resolvi continuar assim mesmo. Começou a entardecer e fui, aos poucos, percebendo que meus 48 aninhos estavam pesando. O cansaço aumentava a cada curva da subida sem fim. Mas também a cada curva a paisagem ficava mais bonita! Por volta das 15 horas, entendi que não daria para chegar em Águas da Prata no ritmo que eu estava indo, e resolvi criar um plano B. Consultei o mapa e vi que haviam duas pousadas em São Roque da Fartura. Foi um momento de decepção, mas tive que assumir a derrota. Eu pernoitaria em São Roque.
A subida continuava. A água da çaramanhola acabou e, ao parar, percebi que eu havia perdido a garrafa de água mineral que comprara em Itobi. Muita sede! Só floresta e subida! Como não havia o que fazer, liguei o iPod e prossegui. Em uma certa parte, surgiu uma bifurcação e eu não vi as setas amarelas. Bem naquele momento  (eu só havia visto uma pessoa passando de trator nas últimas duas horas) veio uma senhora caminhando na minha direção. Nos cumprimentamos e ela confirmou o caminho a seguir. Perguntou se eu estava com sede. Respondi que minha água havia acabado e ela me disse que morava perto, e que ficaria feliz em me ajudar. Caminhamos juntos por uns 10 minutos até a casa dela e eu, que há alguns anos não me sentia confortável com estranhos, conversei descontraidamente com aquela senhora. Assim que chegamos à porta do sítio, ela gritou "ô fulana, abre aqui! E traz água pro moço!"

A senhora Berenice (esse é o nome dela) me deu água super gelada. Eu bebi, enchi a caramanhola e então ela me deu uma garrafa pet, com mais água gelada: "essa é pro senhor levar". Ainda tem muita gente boa no mundo! "Mais pra cima tem a pousada da Cidinha. Se o senhor parar lá, manda um abraço pra ela. Vai com Deus!"
A pousada da Cidinha é um lugar maravilhoso! Fica no alto da montanha e a vista é. Tirar o fôlego! Na entrada há um sino com uma placa pedindo ao peregrino que "toque o sino para ser atendido". Fui recebido pelo filho da Dona Cidinha, o Junior. Ele me ofereceu água e disse que era pra eu deitar no sofá da varanda e descansar o quanto quisesse (nessa altura a água da Dona Berenice já havia acabado). Começamos a conversar. O Junior me disse que mora com a esposa (que eu conheci, mas não lembro o nome) "naquela casa ali". Ele me perguntou de onde eu era, e ai eu notei uma coisa: o Junior realmente se interessava pelo que eu dizia! Muito diferente das pessoas da cidade grande, que costumam conversar sobre amenidades apenas pra passar o tempo, o rapaz pareceu realmente se interessar sobre minha história. Ele me disse que havia feito o caminho em 2009 para pagar uma promessa. Eu contei do meu pai e de como me sentia grato por poder estar fazendo o caminho. Nos despedimos e eu dei o recado da dona Berenice.
Já havia anoitecido quando eu finalmente venci o morro sem fim. Liguei o farol e peguei o asfalto. A estrada para São Roque terminava numa longa decida, tão íngrime que devo ter atingido uns 60km/h (não deu pra ver porque estava tudo escuro)! Aquilo sim, foi aventura. Ao final da descida louca, vi uma placa apontando para a "pousada Paina". Achei estranho porque a cidade ainda não havia chegado, mas eu estava cansado e começava a sentir o frio da noite, de forma que, mesmo ressabiado,  resolvi entrar. Assim que entrei, uma pessoa saia de carro. Eu perguntei à senhora se seria possível pernoitar e ela me disse: meu pai está aí dentro, chame-o que ele vai 'ajeitar você' (como assim, "me ajeitar"?!)

Quando o senhor Felix me recebeu, senti uma energia tão boa!
Ele me disse que a esposa estava viajando, mas que ele mesmo prepararia o jantar pra mim. Me deu uma toalha e sabonete e me disse para tomar banho enquanto ele preparava tudo.
O jantar estava maravilhoso! Havia arroz, feijão, carne (ossobuco) cozida e alface americana "orgânica", me disse ele. Comemos juntos e conversamos muito. Ele fez café (delicioso) e haviam rosquinhas "aqui mesmo, da roça", falou. Deliciosas! No meio da conversa, passa na TV uma rEportagem no jornal da band sobre as curas nos centros espíritas. A conversa mudou para esse lado, e então a Santa (que, tenho certeza absoluta, me acompanha desde a saída) usou o Sr felix para responder ao questionamento que eu vinha me fazendo. É que durante o caminho, vim refletindo muito sobre o porquê de eu desenvolver trabalhos voluntários em um centro umbandista, sendo que minha 'formação' e minhas convicções são Kardecistas. Não estaria eu no lugar errado (apesar de eu ter me encontrado naquele lugar. Sim, sou ingrato. Ou fui, porque agora não penso mais assim)?
O Sr Felix disse que a família era kardecista, e que havia um centro espírita "aqui mesmo, dentro da propriedade", fundado pelo seu bisavô. A esposa é a atual presidente, apesar de ser a coordenadora da pastoral da criança. "Ela foi chamada pelo padre de São Roque porque ninguém queria assumir a responsabilidade do cargo. A primeira coisa que ela disse ao padre ao receber o convite foi: "eu aceito o convite e prometo trabalhar duro. Entretanto, preciso dizer que sou espírita kardecista. Se mesmo assim eu servir para o senhor...ao que o padre teria respondido: "minha filha, Deus está em todo lugar. Eu quero o seu trabalho, a sua dedicação, o seu esforço. Não quero, de forma alguma, te doutrinar ou fazer com que você pratique os ritos católicos". No domingo seguinte, durante a missa, ela foi apresentada à comunidade pelo padre, que foi logo dizendo: "que fique bem claro que a primeira coisa que ela me esclareceu foi que é kardecista. Portanto, ninguém precisa vir me contar isso! Ela foi escolhida para a coordenação da pastoral por seu caráter, sua dedicação à obras assistenciais (o centro espírita ajuda a manter um hospital para deficientes em São Roque. Durante o mês são arrecadados mantimentos que, junto com roupas e outras coisas, são entregues uma vez por mês para os internos do hospital). "Além disso, uma pessoa espírita assume agora a coordenação da pastoral porque nenhum católico se habilitou a fazê-lo. 
"Deus está em todo lugar", ouvi a Santa sussurrar pra mim naquele mesmo momento. E eu tive a minha resposta.

"Hoje eu te ensinei que há um Deus. Que ele é único, que cuida de nós é que atende nossos pedidos segundo nosso merecimento. Te ensinei que Ele, por ser único, está em todo lugar: na Umbanda, nas capelas e santuários onde você meditou, nas belas igrejas das cidades. Está também no coração das pessoas que cruzaram seu caminho hoje. Deus é bom e justo. Ele usa as pessoas para fazer cumprir seus desígnios e, dessa forma, nos ensina a nos tornarmos bons e justos. Deus é Pai. E Um dia, todos chegaremos a Ele."

2 comentários:

Lilian Caixeta disse...

Estou aqui acompanhando no Google Maps!!!
E adorando "conhecer" as pessoas que aparecem nessa jornada...

Carlos Henrique Diniz Ferreira disse...

Hospitalidade do interior, isso é muito legal.